terça-feira, maio 24

COLABORAÇÕES

O cumprimento da lei nos tempos que correm…
(Retirado do livro “Portugal hoje – o medo de existir” de José Gil)
Sabemos que, neste aspecto, Portugal está a mudar em consequência da pressão da União Europeia. Agora somos obrigados, sob pena de graves sanções económicas, a cumprir certas leis – sempre controlados por instâncias supranacionais.
Mas até aqui – e ainda hoje – subsiste um regime de permissividade, de negligência e desorganização no que respeita aos mecanismos de inspecção e coacção do cumprimento efectivo da lei. Regime que atinge todos os domínios, desde a validade dos atestados médicos até à fuga ao fisco.
De tal modo a não-acção forma um sistema de um lado e de outro da norma, que o exercício do poder, em Portugal, só se tornou possível pela existência de um não-poder real, de uma impotência primordial que atravessa todos os dispositivos do poder (político, jurídico, policial, social, familiar, cultural); e que tem como elemento correspondente o hábito de não agir do lado do sujeito-cidadão obediente. Dos dois lados não se inscreve o que se anuncia que se vai fazer, porque o que se fizer tem, desde o início, a estampilha da não efectuação – ou de efectuação fictícia, ou parcial, ou desviada, “desvirtuada”, aparente, etc.
Daqui se conclui a fragilidade do Estado. O poder real, em Portugal, não é o poder económico, nem o poder político, nem é exercido (no seu sentido lato), pela EU, ou pelo Governo, ou pelas instituições, grupos e pessoas da sociedade civil. Todo este tipo de relações, enquanto gigantesco dispositivo entrópico de não-inscrição, forma uma rede que a todos apanha e que de todos absorve a energia. Existe, em circulação, no nosso país, muito menos poder do que aquele de que os portugueses são capazes (de possuir, deter, manipular, transformar, criar).
Mas o medo está lá, para tudo regular. Assim se compreende que a zona de comportamentos que escapa à lei, longe de permitir transgressões, incitar ao desacato, fazer eclodir excessos, experiências intensas ou anormais, conduza à resignação, à inércia, à complacência relativa a todas as normas, ao consenso forçado do político e socialmente correcto. Essa zona reduz-se, afinal, a uma zona de submissão.
Num tal sistema, em que a não acção é a regra, não se imagina um Estado e uma administração sem burocracia. Porque esta constitui o melhor meio de adiamento e paralisação da acção. Ou, mais precisamente, à maneira das “soluções de compromisso” como Freud caracterizava os sintomas, ao adiar indefinidamente o agir, a burocracia toma a aparência da acção, criando a ilusão da sua efectuação.
Assemelha-se, de facto a uma solução de compromisso: por um lado, a burocracia adia os processos que procuram solução num tempo que pode alargar-se tanto que as datas-limite caducam e a acção jamais terá lugar; por outro, enquanto dura o processo através da circulação dos gestos burocráticos, tem-se a sensação do movimento, de progresso no trajecto que levará enfim à solução final. Este movimento, composto de pequenas acções preparatórias, induz a crenças na acção – quando, de facto, esta só chegará (se algum dia chegar), no fim do circuito.
(Toda uma tragédia nacional, subterrânea, muda, pontua historicamente este fenómeno: quantos morreram porque tiveram de esperar anos ou meses nas listas de espera dos hospitais para serem operados? Quantos viram as suas vidas arruinadas pelas demoras da Justiça, da administração, dos serviços do Estado em múltiplos domínios? Há uma injustiça imanente do poder passado e presente que nenhum sentido da História poderá jamais resgatar).
Seria necessário analisar os diferentes tipos de burocracia, nos diversos sectores da vida do Estado, para se ter uma ideia exacta da sua função na nossa sociedade. No entanto é desde logo claro que quando existe recusa de enfrentamento e condutas generalizadas de evitamentos de conflitos, a burocracia surge como a via que permite ao mesmo tempo exprimir indirectamente a violência conflitual, e impedi-la de se exercer literalmente ou fisicamente. (Por isso, em Portugal, se dá tanta importância e valor a “dar a cara”, é um sinal de coragem. Paradoxalmente, o “não dar a cara” pode não significar cobardia mas prudência, ou mais prosaicamente, estar em conformidade com o comportamento normal.)
Neste sentido a burocracia uma espécie de sintoma social da recusa do conflito e da acção. O que concorda perfeitamente com o que dissemos sobre o efeito entrópico do medo. Que actividade pode ser mais desgastante, mais exasperante pelo sentimento de impotência que faz nascer, do que submeter-se permanentemente aos passes, às mediações, às esperas infindáveis da burocracia?
Kafka disse tudo sobre a burocracia nas sociedades disciplinares. Com uma evidência luminosa, mostrou que nem era preciso dar um conteúdo à lei, para pôr um sujeito ou um povo a obedecer. Para tanto basta a burocracia com a violência anónima dos seus regulamentos, das suas falsa e contínuas inscrições, das suas sequências obrigatórias e absurdas. Segue-se uma devastadora subjectivação dessubjectivada: a do cidadão Joseph K., nu, esvaziado de tanto agir sem resultado, de tanto esperar, de tanto querer saber de que é acusado, ou melhor, de querer saber quem é ele enquanto culpado em nome de uma lei que se revela, afinal, vazia.
A burocracia, o juridismo pertencem curiosamente àquele mesmo fundo que engendra a deambulação barroca do “ando por aí”. O desejo de flutuar, de não entrar na vida real; e o frenesim de tudo regimentar – o mínimo gesto, o mínimo sopro de existência – submetendo-os a uma regra.
O juridismo paranóico de certos chefes e subchefes anseia por abolir toda a margem de tolerância na interpretação das leis: “só assim se mudará o país”, classificado imediatamente de república das bananas” onde tudo é permitido, onde tudo se consegue “à balda”. Daí a necessidade imperiosa e maníaca de notar, de registar o menor desvio, a mínima falta, como se a vida virtuosa e a cidadania perfeita resultassem do mais rigoroso cumprimento da lei. Entre o laxismo da não acção e a tentação do nepotismo o que escolher? Assim formulada, a questão está mal posta. E, no entanto, muitas vezes foi com estas duas opções apenas que os governos que se sucederam depois do 25 de Abril perspectivaram as suas políticas. Há, primeiro, que erradicar o medo da sociedade portuguesa. Conquistar a maioridade, dessubjectivando-se ao enfrentar o acontecimento.
Fazer explodir a imagem de si. Porque todos nós andamos “práqui” como Álvaro de Campos que dizia que nunca conheceu quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


Moral da história:
O que é que afinal mudou em Portugal? O medo mudou de nível?
Ou o medo de intromissão nos assuntos da esfera do Estado por causa das represálias mudou para o laxismo do não te rales porque os que vêm a seguir não são melhores que estes? De qualquer forma a não participação por comodismo não nos dá o direito de criticar seja o que for, embora se reconheça que é mais fácil.

(João Aurélio Raposo)

1 comentário: