Autor da pintura: Jean-François Millet
Ah! As coisas incríveis que eu te contava
Assim misturadas com luas e estrelas
E a voz vagarosa como o andar da noite!
As coisas incríveis que eu te contava
E me deixavam hirto de surpresa
Na solidão da vila quieta!...
Que eu vinha alta noite
Como quem vem de longe
E sabe os segredos dos grandes silêncios
— os meus braços no jeito de pedir
E os meus olhos pedindo
O corpo que tu mal debruçavas da varanda!...
(As coisas incríveis eu só as contava
Depois de as ouvir do teu corpo, da noite
E da estrela, por cima dos teus cabelos.
Aquela estrela que parecia de propósito para enfeitar os teus cabelos
Quando eu ia namorar-te...)
Mas tudo isso, que era tudo para nós,
não era nada na vida!...
Da vida é isto que a vida faz.
Ah! Sim, isto que a vida faz!
— isto de tu seres a esposa séria e triste
De um terceiro oficial de finanças da Câmara Municipal!...
(Manuel da Fonseca)
"Na noite calada e quieta como um grande segredo,
ResponderEliminarandando ao deus-dará nestas ruas desertas,
saio lá do fundo do meu sonho
e olho ao redor de mim.
Cá fora há tudo o que não é do meu sonho:
o frio, e os altos prédios fechados,
e as ruas mortas como paisagem de cemitérios.
E a claridade fugidia dos candeeiros cansados,
como pálpebras que se vão fechar.
E o torpor saindo de todas as coisas
e pairando no ar, como um desmaio iminente...
Só eu ainda tenho passos para andar
e uma não sei que ternura
para todos que estão, para lá das paredes
adormecidos e descuidados
à morte que espreita escondida no mistério da noite...
Em que casa e andar estará dormindo
aquela de quem não sei o nome nem a vida,
mas descobri a cor dos cabelos e a melodia do corpo
quando nos cruzamos esta manhã?
Nesse momento,
ou fosse porque chovia sol sobre a algazarra de gestos
das gentes que iam e vinham e se falavam e continuavam
ou porque nos olhássemos de certa maneira que não saberei contar,
mesmo de longe, dissemos com os olhos, um para o outro
— Hoje é um dia de glória!
Mas tão estranho me pareceu
aquele milagre entre dois desconhecidos,
que nem voltei a cabeça para trás...
Agora este desânimo sem nome
de quem traiu um dia inteiro de vida
e teima ir pela noite dentro
à espera nem sabe de quê ...
De tantas horas iguais estou farto!
Mas ao fim e sempre a mesma esperança:
"um dia virá..."
E eu que tenho a vida desarrumada
como se fosse um milionário bêbado,
ergo-me e saio para a rua deslumbrado
e ressuscitado, todos os dias, ao amanhecer.
E vai a coisa tão certa como uma religião,
quanto pressinto que me olham de todas as caras
como se espiassem um louco...
Onde estão ouvidos que entendam as minhas falas?
E a noite vem encontrar-me deserto e abandonado...
Ah, um dia, quando a morte chegar,
hei de erguer para ela os meus olhos molhados,
e hei de contar-lhe a indiferença do mundo
e a amargura dos altos sonhos desfeitos...
— assim como um menino fazendo queixas a sua mãe."
(Manuel da Fonseca in Ruas da Cidade)
que aqui deixo... ;)