quinta-feira, março 22

Romance do Terceiro Oficial de Finanças


Autor da pintura: Jean-François Millet

Ah! As coisas incríveis que eu te contava
Assim misturadas com luas e estrelas
E a voz vagarosa como o andar da noite!

As coisas incríveis que eu te contava
E me deixavam hirto de surpresa
Na solidão da vila quieta!...
Que eu vinha alta noite
Como quem vem de longe
E sabe os segredos dos grandes silêncios
— os meus braços no jeito de pedir
E os meus olhos pedindo
O corpo que tu mal debruçavas da varanda!...

(As coisas incríveis eu só as contava
Depois de as ouvir do teu corpo, da noite
E da estrela, por cima dos teus cabelos.
Aquela estrela que parecia de propósito para enfeitar os teus cabelos
Quando eu ia namorar-te...)

Mas tudo isso, que era tudo para nós,
não era nada na vida!...
Da vida é isto que a vida faz.
Ah! Sim, isto que a vida faz!
— isto de tu seres a esposa séria e triste
De um terceiro oficial de finanças da Câmara Municipal!...

(Manuel da Fonseca)

1 comentário:

  1. "Na noite calada e quieta como um grande segredo,
    andando ao deus-dará nestas ruas desertas,
    saio lá do fundo do meu sonho
    e olho ao redor de mim.

    Cá fora há tudo o que não é do meu sonho:
    o frio, e os altos prédios fechados,
    e as ruas mortas como paisagem de cemitérios.

    E a claridade fugidia dos candeeiros cansados,
    como pálpebras que se vão fechar.
    E o torpor saindo de todas as coisas
    e pairando no ar, como um desmaio iminente...

    Só eu ainda tenho passos para andar
    e uma não sei que ternura
    para todos que estão, para lá das paredes
    adormecidos e descuidados
    à morte que espreita escondida no mistério da noite...

    Em que casa e andar estará dormindo
    aquela de quem não sei o nome nem a vida,
    mas descobri a cor dos cabelos e a melodia do corpo
    quando nos cruzamos esta manhã?
    Nesse momento,
    ou fosse porque chovia sol sobre a algazarra de gestos
    das gentes que iam e vinham e se falavam e continuavam
    ou porque nos olhássemos de certa maneira que não saberei contar,
    mesmo de longe, dissemos com os olhos, um para o outro
    — Hoje é um dia de glória!
    Mas tão estranho me pareceu
    aquele milagre entre dois desconhecidos,
    que nem voltei a cabeça para trás...
    Agora este desânimo sem nome
    de quem traiu um dia inteiro de vida
    e teima ir pela noite dentro
    à espera nem sabe de quê ...

    De tantas horas iguais estou farto!

    Mas ao fim e sempre a mesma esperança:
    "um dia virá..."
    E eu que tenho a vida desarrumada
    como se fosse um milionário bêbado,
    ergo-me e saio para a rua deslumbrado
    e ressuscitado, todos os dias, ao amanhecer.
    E vai a coisa tão certa como uma religião,
    quanto pressinto que me olham de todas as caras
    como se espiassem um louco...
    Onde estão ouvidos que entendam as minhas falas?

    E a noite vem encontrar-me deserto e abandonado...
    Ah, um dia, quando a morte chegar,
    hei de erguer para ela os meus olhos molhados,
    e hei de contar-lhe a indiferença do mundo
    e a amargura dos altos sonhos desfeitos...
    — assim como um menino fazendo queixas a sua mãe."

    (Manuel da Fonseca in Ruas da Cidade)

    que aqui deixo... ;)

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