terça-feira, julho 12

MEMÓRIA

12/07/04 - DITOS DO CHIFRUDO RECOLHIDOS POR GIL VICENTE"
E que dizia o chifrudo, ao entrar de penetra na Feira convocada por Mercúrio? Que alegava o demo para poder assentar arraiais naquilo que não lhe pertencia?
Dizia que "eu bem me posso gabar, e cada vez que quiser, que na feira onde eu entrar sempre tenho que vender, e acho quem me comprar. E mais, vendo muito bem, porque sei bem o que entendo; e de tudo quanto vendo não pago siza a ninguém por tratos que ande fazendo. Quero-me fazer à vela nesta santa feira nova. Verei os que vêm a ela, e mais verei quem m' estorva de ser eu o maior dela".
E questionado sobre porque não vende ele a Verdade, valor tão mais caro e útil ao Povo, remata o Diabo a questão, assim respondendo: "a verdade pera quê? Cousa que não aproveita, e aborrece, pera que é?"
Mentiras, enganos, homens que se vendem, homens que se compram, homens mexeriqueiros, homens mentirosos, homens lisonjeiros, assim eram os homens do Portugal quinhentista, "os homens de merda" que em vez de servir a Pátria se serviam a si próprios em primeiro lugar.
Deles se queixava em 1546 o Vice-Rei da Índia, Dom João de Castro em carta ao seu filho, enquanto esperava em vão pelas caravelas que de Portugal tinham sido enviadas para o aliviar do Cerco que sofria em Diu: "e estou para me enforcar dessas caravelas lá não serem, e merda para elas e para os que vão dentro, e para Gomes Vidal, porque são homens de merda que não sabem navegar senão para tomarem portos e comerem pão fresco e rabãos e saladas, e andarem às putas; e dizei-o assim ao capitão e a Vasco da Cunha e a Fr. Paulo, porque já não hei-de falar senão desta maneira; e merda para mestre Diogo e para quantos apóstolos vêm de Portugal, porque eu sirvo muito bem El-Rei nosso senhor, e eles são grandes hipócritas, que querem haver bispados para darem renda a seus filhos e terem mancebas gordas."
Era essa a grande maioria da nossa "gesta heróica" dos Descobrimentos, é essa também quase toda a nossa classe dirigente, no dealbar do século XXI.
Diz o povo que prefere mil vezes um Diabo que não conhece a um Anjo que conhece de ginjeira.
E eu digo que, se, à sua maneira, o Diabo de Gil Vicente era um mercador honesto - "vender-vos-ei nesta feira mentiras vinta três mil, todas de nova maneira, cada üa tão subtil, que não vivais em canseira: mentiras pera senhores, mentiras pera senhoras, mentiras pera os amores. Vender-vos-ei como amigo muitos enganos infindos, que aqui trago comigo"

Já Santana Lopes consegue dizer as coisas que diz sem se rir, parecendo completa e totalmente genuíno.E isso, se não fosse tão perigoso, seria deveras caricato. Como as peças de Gil Vicente, que, mais do que comédias, são verdadeiras tragédias portuguesas."

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